sábado, 27 de dezembro de 2008

POESIAS

SENTIMENTO

Como se sente um sentimento?
(In)tenso, (in)constante.
Fala-se dele, decompondo-o
em pedaços.
Mas, ele não se deixa enredar.
Está fora de toda discursividade,
invisível, nas brechas.
Toda certeza arruinada.
O sentimento sente a si mesmo.
É preciso deixá-lo por sua conta e risco.
Não há começo, nem meio,
nem fim.
Ele simplesmente vem e
me ensina
o que é o amor.
(Áurea)
A CAMINHO DE CORUMBÁ
Me enrosco na trama
dessa paisagem.
É necessário se entregar,
se deixar tocar.
O balanço do trem
mexe com as minhas entranhas,
com as minhas memórias,
e descubro que estou viva.
Tudo é rude, simples
e percebo o quanto falta
não para chegar,
mas para aproveitar a travessia,
sugando e se transformando na trama.
(Áurea)
PARA AS PESSOAS DO MEU SONHO
Eu tive um sonho,
ele me falava
de coisas estranhas,
de pessoas perdidas em busca de um sonho.
Havia um vazio,
diferenças inexplicáveis,
mas estavam lá, sozinhos,
tentando a arte de ser guerreiro.
Eu também estava lá,
me convidaram para um banquete
e tive medo, pois a nossa loucura era a mesma:
sonhar um sonho perdido,
seduzir-se por ele
e não ser capaz de explicar.
A ceia termina,
o sonho continua.
Me separo deles,
cavando mais fundo uma ausência
que é mistério, mas
que mantem a vontade e a paixão
de ser guerreira.
(Áurea)

domingo, 21 de dezembro de 2008

MOVIMENTOS CULTURAIS JUVENIS


Queridos leitores, nessa manhã de domingo, quero lhes brindar com a entrevista que a Dirce Zan deu à Revista Alfilo, da Faculdade de Filosofia e Humanidades, em Córdoba, na Argentina. Com o título: "Precisamos compreender as novas linguagens dos jovens para poder pensar a escola", Dirce analisa os conceitos de juventude e suas implicações no campo da educação e da cultura. Ao falar das linguagens dos movimentos culturais juvenis, ela nos ajuda a refletir sobre as diferentes formas de resistência que deveriam nos alertar para o potencial de criação que essas ações representam ao invés de serem criminalizadas. Abrem-se portanto, a nós educadores, grandes possibilidades de investirmos na função das instituições educativas, entre elas a escola, em seu trabalho de propiciar conhecimento a esses jovens envolvidos nos movimentos culturais. Acessem o site: http://www.ffyh.unc.edu.ar/alfilo/26/zan.html. Imperdível.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

JOVENS, OS TUTORES DA DESORDEM E DA VIOLÊNCIA?

JOVENS, OS TUTORES DA DESORDEM E DA VIOLÊNCIA?[1]



“Não se pode ser sem rebeldia (...)”.
Paulo Freire

Desde os séc. XVI e XVII, com a crescente disciplinarização da sociedade e de suas instituições, a criança e depois os jovens passam a ser cuidados com o objetivo de serem protegidos da promiscuidade dos adultos e, ao mesmo tempo, vigiados e controlados. Pesquisadores[2] assinalam a importância do surgimento dos colégios e da formação das Ciências Humanas que vieram colaborar no processo de vigilância e punição dos indivíduos considerados improdutivos, perigosos e frágeis. Na mira, estavam e sempre estiveram - entre mendigos, libertinos, loucos, mulheres – crianças e jovens vistos como os “tutores da desordem”, portanto, propícios à delinqüência, à preguiça, à drogadição, às perversões sexuais.
Como nos mostra Foucault[3], simultaneamente à criação de asilos, hospícios, prisões e escolas, organizou-se um conjunto de preceitos, compreensões e métodos de pesquisa visando a produção de um saber sobre esses mesmos mendigos, libertinos, crianças, loucos, escolares, etc.
Dentre os saberes, que se organizarão então em disciplinas, com currículos definidos e objetos cada vez mais delimitados, a medicina e a psicologia passam a reunir um conjunto de especialistas que irá extrair e formular, para o tema que nos interessa aqui, das crianças e dos jovens, saberes que irão fazer parte de um corpo de conhecimento capaz de “naturalizar” e generalizar a relação entre comportamento violento e juventude.
A psicologia do séc. XIX e XX ao criar o conceito de “adolescência” como uma fase de preparação psicossocial para a vida adulta, acaba desenvolvendo padrões ideais de maturidade, visando o ajuste, a adaptação do jovem às normas e aos valores sociais. Quando algum jovem (como algum louco ou prostituta, em outros segmentos “clínicos”) não se adaptava a essas normas tornava-se necessário intervir, afinal, todo desvio do padrão constitui por si algo a ser estudado, algo sobre o que se necessita estabelecer um conhecimento, que permita também uma atuação e prevenção das energias desordeiras dos mais jovens.
O conceito de adolescência foi sendo construído desta maneira, através de modos de comportamento e classificado como uma fase do desenvolvimento humano pela psicologia e medicina, passando a ser considerado como uma fase de vida ou período crítico na formação do indivíduo, compreendendo ainda, para sua conceituação a definição de uma faixa etária com início na puberdade até o que foi estabelecido como total amadurecimento físico, social e psíquico. Foi tida ainda como uma fase intermediária entre a infância e a idade adulta, se esperando que ao seu final, o indivíduo estivesse “pronto”.
Esta conceituação da adolescência estabeleceu, e com isso naturalizou, portanto, uma definição do que ela é e do que não é. As pesquisas feitas por muitos estudiosos, possibilitaram o surgimento dos manuais de psico-pedagogias que passaram a formular inúmeras teorias com caracterizações universais sobre a adolescência, para possibilitar a orientação dos jovens em suas diversas etapas de desenvolvimento, adaptando-os a uma vida social e cultural conforme a ordem social pretendida.
Atualmente, esta ordem social marcada por uma sociedade mediada pelos objetos de consumo, transformou a adolescência em um protótipo da felicidade. Este período da vida, como mostra César (1998), passou a ser compreendido não mais por idades cronológicas demarcadas, mas como uma possibilidade de se “ganhar mais tempo para ser feliz”.
Segundo Michel Foucault (1988), diversas maneiras são criadas ou produzidas social e culturalmente para determinar o que pode e o que não pode, o que é e o que não é, o que acaba criando modelos de comportamentos, alterando atitudes e passando novos valores. Além disso, não há espaços que permitam reflexões para mudanças sobre estas produções.
Novas formas de controle, então, foram inventadas e instituídas para apropriação da força e energia do desejo e do interesse do adolescente em ser diferente e vivenciar coisas novas no imperativo de ser feliz a qualquer preço. Esta busca de felicidade seja coletiva ou individual, é uma brecha para que a sociedade imponha modelos de conduta através dos fetiches de consumo.
No entanto, é um equívoco considerar que os adolescentes não possam conhecer suas outras possibilidades. Existem sujeitos e grupos que continuamente estabelecem movimentos de resistência, fazendo surgir inúmeras possibilidades de vivenciar descobertas e agir sobre si mesmos e sobre o outro, estabelecendo fronteiras e construindo limites que podem ser alcançados, aprendendo a sentir e experimentar sentimentos diversos de formas diferentes.
Para De La Taille (1998), os limites para estes denominados adolescentes não são vistos através de uma definição restritiva e coercitiva como comumente se faz. Também significam barreiras a serem transpostas, com vistas a um crescimento ou maturidade, ou podem ser associados a algo que deve ser respeitado e, ainda, uma necessidade de controlar o acesso dos outros à sua intimidade ou privacidade.
O adolescente pode criar, então, uma rede de resistência que o torne seguro, resguardando sua relação consigo mesmo e sua possibilidade de controlar seus limites, mantê-los, diminuí-los ou aumentá-los, o que mostra a mobilidade criada por ele para suas fronteiras.
Ao sentir a perda desta rede de resistência, o adolescente pode buscar novas maneiras de fugir de proibições e interdições, fazendo com que surjam tensões e acirramento de conflitos sociais. Muitas vezes eles conseguem burlar regras, normas e vigilâncias, produzindo cada vez mais e com enorme criatividade e prazer, formas de transgressões, inventando novas maneiras para se sentirem diferentes dos “caretas” e das convenções sociais.
Muitos dos comportamentos tidos como “de risco”, “rebeldes” e “típicos dos adolescentes” serão sempre uma forma de estabelecer essa diferenciação, distância e possibilidade de resguardo. Essas atitudes favorecem a instalação de conflitos uma vez que as regras e as normas questionadas são mais impostas e cobradas e, desse modo, o adolescente, vendo negada a sua individualidade, acaba por manifestar novas formas de contestação.
Dessa maneira, pode-se refletir sobre esta problemática a partir, por exemplo, da situação de adolescentes que estão em “liberdade assistida”[4] que, além de enfrentarem o estigma da transgressão, da desordem, da violência, vivenciam o ser jovem como estando sujeito às diferenças de gênero, de nacionalidade, de etnia, de classe social.
Durante uma das oficinas, realizadas por integrantes do Violar[5], em uma escola pública da cidade de Campinas, pôde-se entrar em contato com crianças e adolescentes que vivem cotidianamente várias situações de enfrentamento com a violência na e da instituição onde estudam.
Todo o trabalho do grupo na escola foi permeado por tapas, brigas, tagarelices, entradas e saídas consecutivas para “tomar água”, “ir ao banheiro”, “telefonar”, “fazer uma coisinha lá”[6].
O objetivo da oficina era explorar o universo poético vivido e criado na escola – música, poesia, histórias, mitos, imagens fílmicas, pictóricas – detectando nesse universo a manifestação reprodutiva e/ou criadora do imaginário da violência. Queríamos saber como todas as imagens que perpassam o espaço escolar podem também ampliar a visão sobre a violência, acionando outras imagens e com elas uma (re) construção da história pessoal e coletiva dos que estudam e trabalham na instituição, de modo a dissolver o que está rigidamente solidificado. Como fazer isso, sem tolher a liberdade deles? Como proceder, se tanto dentro como fora da escola eles foram “treinados” a consumirem as imagens do mundo sem reflexão?[7]
Crianças e jovens, estão sendo formados dentro dos preceitos do individualismo estrito. Aprendem a transitar pelo mundo através de um processo metonímico, ou seja, uma pequena parte do mundo passa a representar o todo. Eles vêem a imagem de um lugar e reconhecem a cidade, o país, mesmo nunca estando lá. São as novas formas de territorialização[8].
Este processo de territorialização acontece também pela formação de comunidades onde a interpretação dos sinais do mundo se dá de determinado modo e, cada uma destas comunidades formula essa interpretação de mundo que passa a ser o eixo organizador de cada uma delas, “produzindo” tanto identidades que se fixam em papéis sociais padronizados, criando territórios que transformam aquilo que capturam em subjetividade construída segundo os códigos vigentes, quanto “processos de subjetivação” que podem se constituir em outras maneiras de ser, juntamente com outros grupos em busca de autonomia, de liberdade em relação aos poderes difundidos na sociedade; este seria um modo de efetivar a desterritorialização.
Não podemos ingenuamente imaginar que essa desterritorialização é somente libertadora. Este movimento sempre será complementado pela organização, em um novo território, daquilo que se rompeu, isto é, haverá uma nova reterritorialização que, apesar de engendrar novos poderes e novos saberes, abrirão brechas para os movimentos de protesto contra os modos dominantes de existência (Deleuze, 2000: 33-45).
A escola, que é um espaço onde crianças e adolescentes poderiam compreender (por isso reterritorializar) as informações contraditórias ou opostas deste novo mundo (que é o delas também) é o centro de confluência destas mesmas informações e poderia ser o lugar onde a criança e o adolescente tivessem a interlocução para dialogar e conversar, para construir suas imagens e opiniões, a partir dos dados que recebem e elaboram.
Mas, nesta sociedade tecnológica de alfabetizações múltiplas, onde todos têm acesso às informações por meio de várias mídias e contatos, a escola sofreu uma mudança em seu estatuto educacional. Passou a ser escola de massa que não atende às necessidades do aluno, de cada aluno, não conseguindo sequer aquilo que seria sua função básica, a alfabetização literal. Sua institucionalização condensa os preceitos mercadológicos de produtividade, em detrimento da qualidade.
Os discursos vêm de fora da escola, eles é quem falam sobre a escola. As políticas públicas foram chanceladas pela mídia nos anos noventa, implantadas pelos profissionais que transitam da educação para a mídia, atendendo a um mercado que a cada dia define formas concretas de existência dentro da nova reorganização da economia mundial[9]. A escola não tem mais voz, seus discursos são estrangeiros e importados, e quem dita as novas regras é a economia e a psicologia que, retirando o poder/saber da instituição escolar, instituem outras regras através do levantamento de novas necessidades para a discussão, na escola, de temas como violência, sexualidade, meio ambiente, etc.
As diversas linguagens da mídia, entre elas as da internet, da televisão, dos jornais e do cinema, transmitem diferentes mensagens de valores e a escola precisaria, então, ser politizada para rediscutir, incorporar ou não estes valores, sempre estabelecendo o espaço para o confronto das várias perspectivas.
Vivendo em uma sociedade multicultural, que significa também apropriar-se de muitas culturas lingüísticas (oral, hipertextual, artística, escrita, áudio visual) as crianças e jovens necessitam contemplar esta diversidade. Não se pode esperar que todos os espaços sociais sejam palco para essa vivência, mas, ao menos na escola, isto poderia ocorrer. Na medida em que há poucas brechas nos espaços institucionais, perpetua-se nestes mais um local de não inclusão social.
À escola cabe não ignorar estes processos, rechaçando pontos de vista que se coloquem como sendo únicos e fazendo com que crianças e adolescentes descubram a existência de muitas outras perspectivas, também verdadeiras. Acreditamos que o desafio da escola é não assumir posturas de proteção e nem idealizadoras junto aos alunos, aceitando que haja uma atitude crítica para descobertas, pesquisas, questionamentos e análises formadoras de conhecimento.
A linguagem do cinema na escola, por exemplo, é um objeto de estudo, que pode ser utilizada como formadora de um leitor crítico através da leitura visual de mundo. A linguagem midiática do cinema será compreendida como um instrumento de expressão, para que através de sua leitura, crianças e jovens não sejam só receptores, mas tenham voz e representatividade de si próprios.
Para tanto, é preciso considerar quem é este jovem, quais são suas “experiências vividas”[10], sabendo que ao chegar no espaço escolar ele é resultado de um processo educativo amplo, daí a necessidade de apreendê-lo como sujeito sócio-cultural, e não apenas classificá-lo como aluno. Este jovem expressa a multiplicidade cultural apesar da aparência de homogeneidade, pois uma mesma linguagem pode expressar múltiplas falas (Dayrel, 2000).
Alberto Melluci (1997) mostra, em seu texto sobre a juventude e os movimentos sociais, que o jovem possui um potencial enorme para ser questionador, crítico e transgressor da ordem social, ou seja, para ser um jovem que sabe o que quer e que tenta alcançar o que deseja. Porém, para alcançar esses objetivos, o jovem tem que lutar em uma sociedade que, ao mesmo tempo em que discursa sobre eqüidade e autonomia de escolhas (Goergen, 2001), impõe modelos a serem seguidos, mostrando uma face altamente preconceituosa e discriminatória.
Esta sociedade mostra ao jovem que sua adolescência é um tempo que passa rapidamente, por isso ela pode ser estendida a idades mais tardias e, para aproveitar o máximo que puder, é preciso aprender logo novos papéis sociais e, assim, ajustar-se a uma sociedade cada vez mais complexa e competitiva.
Sociedade que Nietzsche (2003) já criticava por sua “cultura filistéia”[11] responsável por subjugar o conhecimento, a educação às leis que regem as relações comerciais, revelando assim, a pobreza filosófica de uma época. Não podemos nos esquecer que, para este pensador, a filosofia e a arte estão no centro de sua compreensão sobre a vida e o mundo. Segundo ele, tanto a arte como a filosofia, enquanto produções desvinculadas de qualquer intenção utilitária, são capazes de libertar os homens e de propor para a cultura a criação de novas possibilidades de vida (Machado, 1984:98).
A educação e a formação dos jovens devem contemplar e aprimorar a própria situação destes no mundo, e o pensamento cultural da época em que eles vivem deve ser também parte da discussão na escola, se ela estiver disposta a trabalhar a realidade dos seus alunos. Se “a verdadeira cultura é uma necessidade”, mas, “(...) acaba sendo formada e influenciada pelo Estado, pelos ricos e eruditos ‘cientistas’” (Nietzsche, op.cit., p.25), como garantir a criação de novos valores? E, se a cultura pode levar à compreensão do homem, o que os jovens estão considerando como sendo cultura?
Educação não pode ser uma questão burocrática, nem uma liberação geral dos costumes e valores, mas fundamentalmente possibilitar que os jovens possam se posicionar contra a barbárie (Adorno, 1995), as banalizações e a superficialidade das relações e da vida. Educação que forme pessoas capazes de dizer não ao mundo, ao Estado, que prepare jovens para controlar a cidade, para formar uma cidade educativa (Gadotti, 2005, p.14).
Se este ser contemporâneo é simultaneamente novidade e repetição, clichê e criação, que lugar tem hoje a escola como palco para essa confrontação? E, retomando a questão colocada no trabalho com os adolescentes: como conduzir uma oficina que visa não repetir o modelo de subjugamento e afirmação da autoridade?
Se toda afirmação de um saber, seja do mediador, do aluno participante, do professor, é a afirmação de um poder, como não explicitar que uma oficina é e será inevitavelmente palco para confrontações de poderes e saberes diferentes?
A questão então pode ser colocada em termos nietzscheanos: toda oficina (como toda atividade humana, diga-se de passagem) é um evento de confronto de vontades de poder que colidem. Nada mais que isso, e isso não é pouco. Mas, como então participar dessa colisão inevitável, sem repetir o padrão de dominação/subordinação, no qual o detentor do poder institucionalizado assumiria o comando da produção do saber a ser transmitido?
Esta não é uma tarefa fácil, não só porque as tentativas de transformação são abortadas, ou cooptadas pelos grupos no poder, mas também pela reencarnação dos modelos dominantes em nós, nas famílias, nos partidos, nos líderes. Porém, como nos mostra Guattari (2000:47), apesar dos fracassos dessas tentativas, “apesar de estarmos todos dispersos, perdidos, invadidos pela angústia, pela loucura e pela miséria”, certas ações têm desencadeado atitudes de recusa por parte de grupos que desejam se livrar dos sistemas padronizadores: crianças, mulheres, artistas, homossexuais, músicos, poetas que se recusam com as suas ações a aceitar o sistema de vida que lhes é proposto, pois criam seus próprios modos de referência.
Foucault (1985:91), refere-se à construção de um modo de existência que para ele implica num voltar-se sobre si mesmo e sobre o outro. Constituir-se a si mesmo enquanto sujeito ético de suas próprias ações é vincular o que eu sou, ao que se pode fazer e ao que se é obrigado a realizar.
Esse “cuidado de si” é totalmente diferente do olhar narcísico contemporâneo. Ele não implica em “auto-ajuda”, nem em exercícios solitários de introspecção, produzindo o isolamento em relação ao mundo. Egoísmo e cuidado de si são antagônicos, pois é o completo domínio de si mesmo que desenvolve o distanciamento entre si mesmo e o outro, de modo que se possa examinar se os princípios das ações que estabeleço para mim correspondem às minhas ações junto a outros. Essa experiência de si é dominar-se não com uma força que reprime o que está prestes a explodir, mas que provoca um prazer que se tem consigo mesmo (Foucault, op. cit., p.70).
Finalizamos esse artigo, acreditando que estamos todos em busca de novas possibilidades de vida. Os “acontecimentos”[12] que atingem nossas vidas nos lançam em ações nas quais pensar é enfrentar o fio da navalha entre a vida e a morte, é enfrentar-se a si mesmo num perpétuo combate entre o que somos e o que desejam que nós sejamos, entre o trabalho de si para consigo e a comunicação com os outros (Guimarães, 2006).


BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1995.
CÉSAR, M. Rita de Assis. A Invenção da Adolescência no Discurso Psicopedagógico. 1998. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.
DAYRELL, Juarez. A escola como espaço cultural. In: DAYRELL, Juarez (org) Múltiplos olhares: sobre educação e cultura. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2001.p.136-161.
DE LA TAILLE, Yves. Limites: três dimensões educacionais. São Paulo: Ed. Ática,1998.
DELEUZE, Gilles. Conversações. R.J.: Ed.34, 1992.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1977
___________. O nascimento da clínica. R.J.: Forense Universitária, 1977
___________. Microfísica do poder. R.R.: Graal, 1979
___________. História da sexualidade I: A vontade de saber. 3ª ed. R.J.: Graal, 1980
___________. História da sexualidade 3: o cuidado de si. R.J.: Ed. Graal, 1985.
___________. A história da loucura na idade clássica. S.P.: Perspectiva, 1987.
FRIGOTTO, Gaudêncio. “Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática”. In: GENTILI, Pablo A.A. e SILVA, Tomaz Tadeu da. (orgs.) Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação: visões críticas. 4ª ed. Petrópolis, R.J.: Vozes, 1996, pp. 31-92.
GADOTTI, Moacir. Educação e desigualdade social. Disponível em: . Acesso em 08/08/2005.
GALZERANI, Maria Carolina Bovério. O almanaque, a locomotiva da cidade moderna: Campinas, décadas de 1870 e 1880. Tese (doutorado em História) – IFCH, UNICAMP, Campinas – SP, 1998.
GOERGEN, Pedro. Pós-Modernidade, Ética e Educação. Coleção Polêmicas do Nosso Tempo,79. Ed:Autores Associados, Campinas, 2001.
GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 6ª ed., Petrópolis, R.J.: Vozes, 2000.
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MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. R.J.: Rocco, 1984.
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MELUCCI, Alberto. Juventude, Tempo e Movimentos Sociais. In Juventude e Contemporaneidade, Revista Brasileira de Educação, Rio de janeiro: ANPED, número Especial, n° 5maio/jun/jul/ago/1997 e n° 6, pp.3-14, set/out/nov/dez/1997.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos de Educação. São Paulo: Loyola, 2003.
SCHINDLER, Michel. “Os tutores da desordem: rituais da cultura juvenil nos primórdios da Era Moderna”. In: LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean-Claude (orgs.) História dos jovens I: da Antiguidade à Era Moderna. S.P.: Companhia das Letras, 1996, pp.265-324.
VARELA, Júlia e ALVAREZ-URIA, Fernando. “A maquinaria escolar”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.) Teoria & Educação. R.S.:Pannonica Ed., vol. 6, 1992, pp.68-96.

OBSERVAÇÃO:
Este artigo foi publicado no livro Cotidiano Escolar: emergência e invenção, organizado por Ana Maria Faccioli de Camargo e Márcio Mariguela, pela Jacintha Editores, Piracicaba, São Paulo, no ano de 2007.




[1] Este artigo foi redigido pelos integrantes do grupo de pesquisa VIOLAR: Laboratório de Estudos sobre Violência, Imaginário, e Formação de Educadores, da Faculdade de Educação da Unicamp, contando com a colaboração dos seguintes pesquisadores: Adriana Dezotti Fernandes, Albor Vives Reñones, Andréa Cristina Martelli, Áurea M. Guimarães, Luzia Batista de Oliveira Silva, Marcos Antônio Recchia, Maria Angélica R. Trentinália, Maria Aparecida Carmona Ianhes Anser, Sheyla Pinto Silva, Sônia A. Bortolotto Torezan, Tânia Maria Rechia, Tânia Maria Ximenes Ferreira.
[2] Michel Foucault, - Vigiar e punir: nascimento da prisão, - Microfísica do poder, - História da Sexualidade I: A vontade de saber - História da loucura na idade clássica; de Julia Varela e Fernando Alvarez-Uria, - A maquinaria escolar.
[3] Idem, A história da loucura na idade clássica e O nascimento da clínica.
[4] A liberdade assistida é uma das medidas sócio-educativas previstas no artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8069/90, através da qual o “adolescente infrator” permanece em situação de liberdade restringida por um período mínimo de seis meses. Algumas pesquisadoras do grupo Violar têm contato com esses jovens durante o atendimento realizado nos programas desenvolvidos junto a Ongs (Organizações Não Governamentais) ou aos departamentos de Promoção Social das Prefeituras Municipais.
[5] O projeto que fundamenta essas oficinas, realizadas em diferentes espaços educativos, tem por tema “O imaginário da violência e a escola” e integra as pesquisas do Violar.
[6] Os alunos entendiam a liberdade de expressão como “brincadeira”, portanto, a criação caberia nesse momento e não na sala de aula, porque aí “a coisa é séria”, isto é, “repetitiva”, “chata”, “sem graça”. Percebemos a existência de uma cisão não somente entre as oficinas e o espaço de ensino-aprendizagem, como também dentro das próprias oficinas, em relação a ações que, por lembrarem os momentos da sala de aula, passavam a ser rejeitadas.
[7] Ao final de cada atividade, nas quais agiam livremente, iniciávamos uma outra, exigindo deles um esforço de concentração nos sentidos das imagens e das palavras mostradas durante a oficina. O interesse demonstrado era ao mesmo tempo permeado por atitudes de deboche, irritação, cansaço. Nesse momento, consideramos que o fato da escola treiná-los para executarem atividades que exigem pouca ou nenhuma reflexão, os acostumou a rejeitarem qualquer tipo de ação que os façam pensar com autonomia.
[8] Para Deleuze e Guattari , “os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes (...). O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linha de fuga e até sair de seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfazem ininterruptamente (...). A reterritorialização consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado num processo desterritorializante. O capitalismo é um bom exemplo de sistema permanente de reterritorialização: as classes capitalistas estão constantemente tentando ‘recapturar’ os processos de desterritorialização na ordem da produção e das relações sociais (...)”. Ver Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo, p.323.
[9] Segundo Frigotto, “(...) os novos conceitos abundantemente utilizados pelos homens de negócio e seus assessores – globalização, integração, flexibilidade, competitividade, qualidade total, participação, pedagogia da qualidade e a defesa da educação geral, formação polivalente e ‘valorização do trabalhador’ – são uma imposição das novas formas de sociabilidade capitalista tanto para estabelecer um novo padrão de acumulação quanto para definir as formas concretas de integração dentro da nova reorganização da economia mundial”. Ver Gaudêncio Frigotto, Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática, p.40-41.
[10] “(...) sensibilidades que permitem a expressão de todo o grupo, na tessitura das histórias”. Ver Maria Carolina Bovério Galzerani, p. 205.
[11] A palavra “filisteu”, ou os chamados “filisteus da cultura” designava aqueles que, “estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres, execravam a liberdade gozada pelos estudantes. O ‘filisteu’ era uma personagem de bom senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas. Usava o mesmo raciocínio para abordar as riquezas mundanas e as riquezas culturais. (...)”. Nietzsche fazia críticas radicais à cultura alemã de seu tempo e, para ele, os ‘filisteus da cultura’ além de não serem cultos, tinham a ilusão de sê-lo. Incapazes de criar, limitavam-se a imitar ou a consumir, sendo a imitação uma outra forma de consumo. Puseram a cultura à venda, subjugada às leis que regem as relações comerciais e a pergunta a ser respondida para se avaliar qualquer produto cultural, segundo Nietzsche, seria: ‘Quem e quantos consomem’ ”. Ver Scarlett Marton, Nietzsche, p.32-33.
[12] Para Deleuze, a noção de acontecimento é entendida enquanto ruptura e não como um evento em si mesmo. Os acontecimentos são oportunidades que aparecem como num relâmpago, é preciso agarrá-las. Ver Gilles Deleuze, Conversações, p.218.

UMA MENSAGEM DA ASSOCIAÇÃO VIRTUAL DOS SOCIÓLOGOS - AVISO

Meus amigos.
Acabei de receber do Grupo "Associação Virtual dos Sociólogos - AVISO" (http://groups.google.com.br/group/avisoc) uma mensagem na qual repudiam, junto ao prefeito de Mogi das Cruzes, a indicação, para secretário de Segurança Pública dessa cidade, de um ex-comandante da Rota, chamado Eli Nepomuceno, envolvido em diversos assassinatos de jovens. Nepomuceno é apontado pelo jornalista Caco Barcellos, como o responsável pelas mortes e assassinatos de vários jovens e de trabalhadores acusados de "envolvimento com crimes", envolvimentos estes não comprovados. Até mesmo o prefeito Pitta acabou voltando atrás na indicação dele para a segurança pública em São Paulo. Com esse ato, dizem os manifestantes, o prefeito de Mogi das Cruzes acabou se colocando na contramão de uma política de segurança pública cidadã e comunitária sintonizada com os anseios da comunidade.
Esse assunto, caros leitores, merece um comentário da nossa parte, pois a indicação do prefeito de Mogi parece refletir a idéia consensual, que nos acompanha desde o séc. XVI, de que é preciso exercer uma controle repressor principalmente junto às crianças e aos jovens, considerados como os tutores da desordem e da violência. Policiais que "exageram" nas punições, muitas vezes, são elogiados por sua "dureza", tanto pela corporação quanto por alguns segmentos da sociedade. Mas, o que nos leva a desejar a repressão? Por que, o número de jovens assassinados no Brasil, supera o número de jovens mortos na guerra do Iraque? Essas perguntas, levaram o grupo Violar a produzir um texto coletivo intitulado: Jovens, tutores da desordem e da violência? O artigo está publicado no livro Cotidiano Escolar: emergência e invenção, organizado por Ana Maria Faccioli de Camargo e Márcio Mariguela, publicado pela Jacintha Editores, Piracicaba, São Paulo, no ano de 2007. Esse artigo poderá ser encontrado em meu blog, mas eu também sugiro que comprem o livro, pois nele encontrarão textos excelentes de educadores que pensam, vivem e escrevem sobre suas experiências nas instituições educativas. Boa leitura.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

APRESENTANDO O GRUPO VIOLAR

Queridos leitores, hoje, gostaria de apresentar para vocês o Grupo VIOLAR: Laboratório de Estudos sobre Violência, Imaginário e Formação de Educadores, sob a minha coordenação e da Dirce Djanira Pacheco e Zan. Nascido em 2002, na Faculdade de Educação da Unicamp, conta com pesquisadores de várias instituições educativas que se preocupam em estudar as formas pelas quais as situações violentas do sistema social influenciam e constituem o imaginário sócio-cultural, enraizando-se na existência dos homens e interferindo nas práticas institucionais, entre elas, as escolares. Por isso, tentamos em nossos trabalhos, detectar tanto a reprodução do imaginário da violência que preserva as formas estabelecidas, quanto a (des) construção dos sentidos desse imaginário, libertando os eventos de sua compreensão literal.
Também faz parte de nossas investigações pesquisas voltadas para o estudo da cultura, das dimensões do cotidiano das instituições educativas e, em especial do cotidiano escolar, principalmente aquele vivenciado pelos jovens. Esses estudos do grupo têm-se detido no campo do currículo concebido enquanto mediação social, ou seja, um campo construído a partir das lutas sociais e das relações de poder.
São nossos objetivos:
- contribuir para a formação de educadores que recriam, nos interstícios das instituições, o sentido dos textos, dos filmes, dos projetos, das situações violentas, e fazem do espaço onde vivem um lugar rico de novas linguagens capazes de representar e recriar o mundo;

- focalizar a violência dentro do quadro das significações que as pessoas atribuem às coisas e às suas ações, sem perder de vista a relação dinâmica entre subjetividade e fato concreto, entre existência individual e social, entre micro e macro estrutura;

- elucidar de que forma os diversos agentes envolvidos no processo educacional atuam na construção do currículo escolar;

- verificar até que ponto o currículo configura-se como “mediação social”, ou seja, contém as marcas dos conflitos sociais e simbólicos travados entre os agentes envolvidos no processo educacional;

- problematizar a relação do jovem com a sociedade e, especificamente, com a escola, na constituição de suas identidades.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

MENSAGEM DE ANO NOVO


Queridos amigos

Quero agradecer a todos que estão participando do meu blog. Os comentários revelam que não estamos sozinhos na consolidação da democracia em nosso país. Sabemos que não basta votar, é preciso que aprendamos a trabalhar juntos, ainda que tenhamos posições diferentes.
Para mim, o trabalho coletivo não implica em homogeneidade de ações, podemos nos unir em torno de temas comuns que de uma forma ou de outra incomodam/abalam a nossa vida em sociedade. Acredito que esses temas comuns, a exemplo da violência e dos assuntos que a rodeiam, necessitam de olhares diversos para que o nosso pensar transgrida “a ordem do superficial que nos esmaga” como expressa Lya Luft em seu belíssimo livro “Pensar é transgredir”.
Desejo que em 2009, a poesia, a música, o humor, a garra, a vontade de estudar, de pesquisar, de pensar possibilitem a todos nós reinventar soluções locais para que o novo possa acontecer. Lembro ainda que pensar pode ser entendido como experimentar o novo, e que isso não ocorre somente dentro das nossas cabeças, como já dizia Michel Foucault, mas numa “relação consigo mesmo” e com o outro.
Que possamos ser muitos, juntos...
Um grande abraço. Áurea Guimarães.

domingo, 14 de dezembro de 2008

CONVERSANDO SOBRE VIOLÊNCIA ESCOLAR

No meu livro “A Dinâmica da Violência Escolar: conflito e ambigüidade” eu me refiro à “violência institucional”. Esse tipo de violência se caracteriza pela desconsideração aos modos como são partilhados os espaços, o tempo e as relações de amizade entre alunos e, até mesmo, entre os professores e desses com pais, gestores e funcionários.
Por meio das pesquisas que tenho realizado, constato que, a partir da violência do poder institucional sobre as pessoas, ocorre outro tipo de violência, a violência das pessoas sobre esse poder. Reações como indisciplina, quebra-quebra, xingamentos podem não expressar apenas ódio, raiva, vingança, mas, também, uma forma de interromper as pretensões do controle homogeneizador imposto pela escola.
Não pensem que culpabilizo professores, diretores e todos que lá trabalham. A maioria das escolas não têm infra-estrutura para oferecer aos estudantes um trabalho pedagógico de qualidade, um apoio psicológico e psicopedagógico. Então, o que nós encontramos? Alguns professores desmotivados e outros lutando para ensinar nas condições em que a escola se encontra, sob o descaso das políticas públicas, com os salários baixos, muitos em contratação temporária, gerando alta rotatividade nas equipes de trabalho.
O que passa a acontecer? Quando a escola não tem significado para os alunos (e nem para parte dos professores), a mesma energia que leva ao envolvimento, ao interesse por aprender, pode transformar-se em apatia ou explodir em indisciplina e violência. Nenhum projeto de lei, nenhum decreto conseguirá unir alunos, professores e pais no combate à violência, se não houver uma disposição em romper com o isolamento entre as pessoas e em criar uma comunidade de trabalho.
Se entendermos que educar é aprender a gerir relações com o saber, isso implica na existência de uma tensão, pois, se, de um lado, o educador tem a função de estabelecer os limites da realidade, das obrigações e das normas, de outro, ele desencadeia novos dispositivos para que o aluno, ao se diferenciar dele, tenha autonomia sobre o seu próprio aprendizado e sobre sua própria vida, e isso não se faz sem conflito. Alunos e educadores seriam obrigados a formular regras comuns, limites de fechamento e de tolerância.
Portanto não adianta “mapear”, “fiscalizar”, “treinar”, “controlar” comportamentos. O papel da escola é preparar os alunos para conquistarem o ato de pensar, porém, para que isto ocorra, a escola deve existir em um espaço democrático, de modo a garantir o exercício da profissão de educador cuja autonomia lhe foi roubada por meio dos consecutivos saques feitos às instituições públicas do país. Concordo com os educadores que, em sua luta por melhores condições de trabalho, optam por priorizar o ensino e a aprendizagem ao invés de reivindicar o aumento dos aparatos de segurança nas escolas.
Com o advento da escola de massas, há outras regras em jogo e que nada têm a ver com as experiências que vivemos no passado. Existe, hoje, um conjunto de regras muito diversificadas que precisam ser conhecidas para que os educadores descubram os mundos de onde os alunos provêm. É preciso construir práticas organizacionais que levem em conta as características das crianças e jovens que hoje freqüentam as escolas. A organização do ano escolar, dos programas, das aulas, a arquitetura dos prédios e sua conservação não podem estar distantes do gosto e das necessidades dos alunos.
Como encontrarmos um equilíbrio entre os interesses dos alunos e as exigências da instituição, entre os conhecimentos universais que os alunos têm o direito de receber e os saberes já construídos por esses alunos? É preciso deixar de acreditar que a paz signifique ausência de todo conflito.
Empreendimentos que flexibilizem o tempo e o espaço do território escolar, que não excluam a possibilidade de dissidências e nem o debate sobre essas questões, podem dar início ao despontar de uma solidariedade interna que recuse o coletivismo. Isto é, que rejeite a imposição unitária de comandos e que engendre uma luta pelo coletivo, ou seja, uma atividade conjunta que possibilite a afirmação de outras maneiras de ser, de outras sensibilidades, de outras percepções, considerando todos os acontecimentos que são rejeitados simplesmente por estarem fora dos padrões institucionais.
Algumas pesquisas também têm demonstrado que se não entendermos a violência que permeia a nossa sociedade não conseguiremos compreender o modo pelo qual as instituições escolares se articulam com a violência presente na sociedade. Esse é um aspecto importante, pois significa que um novo projeto educativo deverá questionar a sociedade de consumo e sua indiferença para com as desigualdades sociais, a miséria do cotidiano e a nossa subserviência à lógica empresarial de mercado.
Também gostaria de dizer que apesar das escolas públicas estarem em condições adversas, muitas delas realizam, graças a esforços heróicos de seus diretores, professores, funcionários, experiências bastante significativas para a formação dos alunos. Mas, infelizmente, esses exemplos são pouco conhecidos e divulgados porque explicitam o abandono do Estado e a necessidade de atuações efetivas que articulem uma crítica à sociedade, aos seus valores, aos conteúdos curriculares expressos nos documentos oficiais e o projeto pedagógico construído por essas escolas de forma autônoma e democrática.
Áurea M. Guimarães

sábado, 13 de dezembro de 2008