sexta-feira, 28 de maio de 2010

OS CAVALOS QUE SOMOS

Olá!
Hoje, apresento a vocês mais um dos textos do Albor, comentando o filme "Cavalo de duas pernas", de Samira Makhmalbaf. Não há como ficarmos indiferentes à sua escrita e ao desassossego que a temática do filme provoca em nós.


Os cavalos que somos

Filmes iranianos são inegavelmente uma outridade. A narrativa é diferente, a língua é diferente, os atores, gestual, expressividade, tudo difere da ocientalidade, assistimos um filme “de lá” com um misto de curiosidade, surpresa, aborrecimento, tédio, indignação, expectativa etc. Usualmente o filme nos dá algo diferente do que esperamos, claro, por isso ele é diferente, por isso é uma expressão do outro.
O último filme de Samira Makhmalbaf (A maçã de 1994 é talvez seu mais conhecido filme apresentado por aqui, que com uma ternura incomensurável desvela a tragédia do abandono familiar) escrito pelo pai, o também cineasta Mohsen Makhmalbaf, é Cavalo de duas pernas (Asbe du-pa - 2008), e entra, ou melhor invade, ou melhor ainda avassala o espectador de modo indiscutível. Não se poderá ficar intocado frente à história, à narrativa, aos personagens, às relações. Como em Irreversível de Noé, teremos sempre a imagem de algumas cenas nos acompanhando.
Um menino mimado pelo pai teve as pernas amputadas por uma mina, que também vitimou sua mãe, sua irmã sofre de alguma doença e viaja com o pai para o exterior. Na miserável cidade o cuidador do menino contrata um miserável moleque forte para servir de transporte do inválido, levando-o “de cavalinho” para as aulas e passeios.
É fácil e tentador ver as analogias sociais: país rico oprimindo o país pobre, o filme rodado no Afeganistão depois da invasão russa, depois da invasão estadunidense; pessoa rica oprimindo a pobre; dominação pela miséria ...
E não se poderá dizer que isso não faça parte das leituras possíveis. Como toda obra de arte esta se presta a estas leituras. Mas evidentemente ela vai além.
Porque o aleijão se afeiçoa de algum modo a seu “cavalo”, este, com algum deficiência mental se adéqua às ordens de seu senhor e seja pelo dinheiro que recebe, que aos poucos perde importância, seja pela relação de submissão – único vínculo que vive no filme todo –, é a contraparte relacional da dominação opressiva.
Ninguém dá a mínima para a relação que ambos constroem. Nenhum adulto se interpõe quando os limites entre a autoridade e o sadismo são cruzados, nenhuma outra criança se enoja com a situação do cavalo, ao contrário, reafirmando a máxima que criança não presta de nascença. Querem todos dar uma volta no cavalo, conseguindo uma sela para que este fique mais cavalo ainda, ou dispondo-se a pagar mais por isso caso nos seus pés sejam pregadas as ferraduras para que o som dos passos pareça-se mais aos cascos...
Então não há relação que não seja de indiferença ou de aproveitamento, e todo afeto será vivido de um modo ou de outro, e a pequena mendiga pela qual se apaixona o “cavalo” é ela também usada como produto de uso, submetida ao pagamento do senhorzinho feudal. Não há como não lembrar do título de Fassbinder, O amor é mais frio que a morte (1969).
E as imagens são de uma beleza plástica maravilhosa, como por sinal é comum ocorrer também em outros filmes iranianos, e talvez por isso mesmo elas nos aprisionam dessa forma irrecusável, ainda que dolorosamente incisiva: também a dor é bela, também a opressão é bela, também a submissão é bela, e se o incômodo dessas afirmações é insuportável, moralmente insuportável, pessoalmente insuportável, filosoficamente insuportável, não por isso deixa de ser verdadeiro no filme, e por isso ele escapa a qualquer panfletarismo ou propaganda fácil: ele é insuportável e belo, numa reunião que vai alem do cartesianismo ocidental e do platonismo que cola o belo ao bom e certo. E nisso ele expressa uma vez mais a outridade, mas nós somos também esse outro.
ALBOR VIVES REÑONES



quarta-feira, 19 de maio de 2010

DOS DENTES QUE CAEM E DOS QUE NÃO DEVERIAM CAIR.

Olá queridos e queridas
Albor Vives Reñones, do grupo Violar, nos brinda com um artigo sobre o filme Dente Canino. Numa época em que se fala tanto em "desestruturação familiar", Albor nos apresenta algumas percepções sobre a família e as violências que atravessam a vida de todos nós.
Comentem.

Dos dentes que caem e dos que não deveriam cair
Em meados da década de oitenta os cineclubes (sim, houve um tempo no que as pessoas se reuniam para ver filmes decentes coletivamente, em pequenos cinemas, meio improvisados e mambembes) apresentaram um filme japonês que causou certa comoção e debate na época. A balada de Narayama (Narayama Bushi-Ko, Dir.: Shohei Imamura) ganhara a Palma em Cannes em 83, e fizera já uma carreira premiada. A história da anciã de 69 anos, que ao aproximar-se de seu 70º aniversário prepara sua ida ao monte Narayama para lá, como rezava a tradição, ser deixada pelo filho mais velho para morrer, trazia temas delicados e intensos à tona. A situação de fim de século XIX japonês não diferia muito de algumas regiões miseráveis atuais e, talvez por isso mesmo a disponibilidade de velhinha em seguir a tradição, tenazmente, indicava um valor maior, de sacrifício pela coletividade familiar, que sofreria privações com uma boca a mais.
No ano passado Cannes premiou (em outra categoria, a Um certo olhar) um outro filme que traz à tona uma questão similar: como proteger a família?
Kynodontas (foi apresentado na 33ª mostra internacional de cinema em SP com o título de Dente Canino) do grego Yorgos Lanthimos traz a família recluída em uma casa, cujos únicos contatos com o mundo exterior são as idas do pai ao trabalho, da prostituta que vem vendada para satisfazer as necessidades sexuais do filho, e dos aviões que cruzam o céu e são tratados como aviões de brinquedo, prestes a cair a qualquer instante.

A situação é tão absurdamente impossível que rapidamente entramos no universo alegórico. Tudo ali indica várias possibilidades de entendimento. A mãe define os sentidos das palavras a seu bel prazer, zumbis são flores amarelas e xoxota uma lâmpada grande (e teclado por sua vez xoxota...), assim como os sentidos relacionais são definidos pelos pais conforme acreditam que aquilo protegerá “as crianças” do mundo exterior.

As atividades familiares são todas estruturadas visando alcançar mais pontos, que definem privilégios. Os exercícios, as tarefas, os conhecimentos, os prazeres, são totalmente definidos, limitados e autorizados pelo casal. A família acima de tudo. Filmes são parte da educação indireta (e cenas hilárias da filha mais velha “lutando” e repetindo os diálogos de Rocky – o lutador, e as dancinhas de Flashdance quebram o ritmo claustrofóbico), mas não aqueles que possam atentar contra os valores da família.
Que diferença de famílias! E de estratégias! Poderíamos pensar.
Mas não tão diferentes assim. O canino nunca cai, sabemos todos, inclusive nós que não somos dentistas. Para ter seu pedido aceito de ir a Narayama a velhinha bate com os dentes numa pedra (reza a lenda que a atriz fez concretamente a batida, perdendo os dentes frontais). Para poder sair da casa-refúgio a filha mais velha teria de esperar que seu canino caísse, outra das regras impostas no funcionamento da casa. Cansada de esperar resolve “acelerar” o processo, como a velhinha, abrindo a via de escape na porrada. Mesmo que contra si.
Nem tão diferentes tampouco no indicar as dinâmicas macro sociais em pequenos exemplos holográficos dos microcosmos. Ali, na microfísica se mostram os mesmo poderes, dinâmicas e relações. E as intenções de proteção, nossas e dos outros, com a inevitável tinta de dominação que essa proteção pede, se explicitam com a clareza dolorida de um dente que não cai, para proteger-nos do passo inseguro no “fora”.
E como sempre é mais fácil olhar os dentes do outro que os próprios, aproveitamos este espelho, que reflete nossas bocas, sorrindo, alegres, fechadas, bravas, indignadas, surpresas, ao ver uma situação aberrante sinalizar nosso cotidiano canino, que também não cai...
Os que desejarem ver o filme, que não sei se terá lançamento no Brasil, podem usar da generosidade da rede torrent pelo link (com legenda):

quinta-feira, 13 de maio de 2010

13 DE MAIO: COMEMORAR O QUÊ?

Olá queridos(as)  leitores(as).
Infelizmente, não tenho conseguido atualizar o meu blog com frequência devido ao acumulo de trabalho, mas hoje não poderia deixar de trazer a vocês um artigo escrito pela Jaqueline Lima Santos, uma jovem que atua no Movimento Negro Unificado. O seu texto nos faz refletir sobre o dia 13 de maio.
Um grande abraço a todos(as).

13 DE MAIO: COMEMORAR O QUÊ?

O Brasil, ultimo país a abolir a escravidão nas Américas, aquele que explorou aproximadamente 4 dos 10 milhões de africanas e africanos que foram trazidos para exercer trabalho escravo desse lado do Atlântico, possui hoje o maior número de população negra fora do continente africano.

Estamos aqui para falar de negras e negros como sujeitos políticos no período da escravidão. Todo mundo sabe que no Brasil existiu mais de três séculos de exploração, violência e desumanização das(os) não brancas(os) pela colonização européia, mas o que a história não conta é que as(os) negras(os) também eram agentes frente às formas de opressão, que não eram “coisa”, e sim “ser” diante do sistema escravocrata.

Antes da chegada do 13 de maio, a população negra organizou diferentes movimentos de resistência, através da formação dos quilombos, das irmandades, dos trabalhos urbanos, rebeliões nas senzalas, além das diversas revoltas: Malês, Balaiada, Sabinada, entre outras, e foram protagonistas da primeira tentativa de independência no país, através da formação do Quilombo de Palmares, este que sobreviveu mais de 100 anos como um Estado organizado e independente, derrotou por diversas vezes o exército colonial, até que, depois de diversas tentativas, foi invadido e vencido covardemente em 1695 pelo exército de Domingos Jorge Velho.

Vale lembrar que as mulheres negras tiveram papel fundamental nesses movimentos de resistência negra, exercendo papel de líderes, estrategistas, guerreiras, informantes e organizaram as alternativas criadas pelas(os) negras(os) frente ao Estado colonial.

A população negra dinamizou a história do Brasil, não aceitando a condição de escravizada, estabeleceu contra-movimentos e foi conquistando aos poucos sua liberdade, seja através de fugas, ou através da compra de cartas de alforria, e no 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assina a leia Áurea, apenas 5% da população negra ainda exercia trabalho escravo. No entanto, é dado o bônus pelo fim da escravidão a princesa boazinha que “libertou os negros”, e nada se fala da luta das(os) negras(os) pela sua liberdade. A lei áurea foi uma estratégia para desmobilizar a população negra que, a exemplo do Haiti, em algum momento, através das explosões constantes de rebeliões, tomaria o Estado brasileiro. Além disso, o processo de industrialização no país exigia a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre, só assim o empregador poderia comprar a força de trabalho de acordo com as suas necessidades, e quando contratada, custaria os meios de subsistência do trabalhador.

O que aconteceu a partir de 14 de maio de 1888? A população negra não foi indenizada pelos três séculos e meio de escravidão, as senzalas sobem para os morros, onde hoje se localizam as favelas. A partir de então a imigração européia é incentivada para o Brasil, a fim de ocupar os postos de trabalho assalariado e embranquecer o país, havia até quem acreditasse que em 100 anos não haveriam mais negros no Brasil, e olha nós aqui. Mesmo reconhecendo que estes novos imigrantes foram explorados na venda da sua força de trabalho, eles estavam em condições favoráveis em relação à população negra, através das políticas de doação de terras e moradias que os eram direcionadas, além de serem priorizadas(os) nos postos de trabalho.

Por isso hoje, mesmo a lei áurea tendo marcado “oficialmente” a passagem da(o) negra(o) da condição de escrava(o) a cidadã(o), o que não garantiu nenhum direito da cidadania brasileira a esta parcela da população, que até os dias de hoje encontra-se em condições extremamente desiguais em relação a população branca, o movimento negro no Brasil não comemora o dia 13 de maio, mas tornou essa data o DIA NACIONAL DE DENÚNCIA CONTRA O RACISMO, e comemora o dia 20 DE NOVEMBRO COMO DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA, dia em que morreu Zumbi dos Palmares, mais um dia de luta para a luta de todos os dias.

Hoje, 122 anos após a abolição inacabada, não temos o que comemorar. Queremos nossas carteiras de trabalho assinadas, queremos reparações ações afirmativas nas universidades, queremos punições contra os crimes de racismo, e colocamos o Estado brasileiro no banco dos réus.

Jaqueline Lima Santos
Mestranda em Antropologia pelo Departamento de Ciências Sociais da UNESP - Marília
Pesquisadora do NUPE - Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão
MNU - SP/ FH2I