quarta-feira, 3 de março de 2010

O NOME DO PAI

Olá queridos(as) leitores(as)
Hoje vou lhes apresentar uma história intrigante contada pelo meu amigo Mariguela.



Com certa freqüência sou interrogado: "você é parente do Carlos Marighella?" Esta pergunta sempre me perseguiu desde que passei horas numa sala do quartel militar em Campinas onde em cumprimento ao dever cívico, realizei alistamento. "O que você é do Carlos Marighella?", perguntava-me o oficial com uma voz cada vez mais intimidadora. "Não sei quem é Carlos Marighella", respondia com um pavor cada vez maior. Tentava em vão lembrar algum parente com esse nome. De súbito, veio a lembrança de uma cena em 1969: a televisão anunciava a morte do guerrilheiro Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar. A imagem de um corpo baleado dentro de um fusca e o nome Marighella pronunciado produziu rápida associação levando minha mãe ao desmaio. Naquele mesmo dia, meu pai viajava num fusca branco comprando plantações de goiabas e tomates nos sítios da região noroeste do Estado de São Paulo.
Nada disse dessa lembrança ao oficial que me interrogava. Num relance, vi o nome Carlos Marighella escrito numa folha sobre a mesa do oficial. Arrisquei timidamente e quase sem voz, a seguinte observação: o meu Mariguela é com gu e não com gh. No pé da letra, consegui ser liberado e ao mesmo tempo engajado numa busca arqueológica do nome do pai.
No livro Batismo de Sangue - Guerrilha e Morte de Carlos Marighella, publicado pela Rocco, Frei Betto narrou a trajetória do líder revolucionário traçando os contornos do regime militar que assumiu o controle do Estado durante a ditadura. Lançado em 1982, o livro ganhou o Prêmio Jabuti na categoria de melhor livro de memórias. Recentemente foi transformado em roteiro de filme. Com essa leitura, meu interesse cresceu em intensidade e impulsionado pela curiosidade infantil, construí minha árvore genealógica para verificar se havia algum grau de parentesco entre meu bisavô paterno e o pai do Carlos.
Descobri que ambos vieram de Ferrara, norte da Itália, no mesmo navio. Augusto Marighella desembarcou na Bahia e apaixonou-se por Maria Rita do Nascimento, negra haussá, vinda da África. Augusto era mecânico e consta que introduziu o martelo de borracha nos serviços de recuperação de lataria. Teve oito com sua africana, Carlos era primogênito. Meu bisavô, Henrique, seguiu viagem pelo litoral e desembarcou no porto de Santos. Na recepção aos imigrantes, seu sobrenome foi aportuguesado em novo registro civil. Seguiu para as fazendas de café na região de Itápolis, interior de São Paulo. Por lá se casou e nasceram doze filhos, meu avô, Ângelo era primogênito.
Ângelo foi alfabetizado por seu pai e assumiu a função de "ensinador das letras", expressão que usava para seu oficio. Alfabetizou todos os seus irmãos e, depois de casado com Apparecida Anjolino, começou a ensinar as letras para os demais colonos na fazenda onde morava. Depois da jornada de trabalho nos campos de café e algodão, os jovens da fazenda se dirigiam à casa do meu avô para aprender a ler e escrever numa grande mesa à luz de lamparinas de óleo. Os que não podiam pagar em dinheiro pagavam com ovos, galinha, porco, etc. Sempre que narrava essa história, meu avô concluía: na família de italiano, para não ser escravo de ninguém, é preciso saber ler e escrever. Ângelo e Apparecida tiveram quatro filhos. Meu pai, era primogênito.
Quando a crise no campo tornou-se uma realidade e a situação financeira ficou insustentável para criar seus filhos, Ângelo mudou-se com a família para a cidade com o propósito de ganhar a vida. Lá trabalhou como mecânico, marceneiro, ferreiro e servente de pedreiro. Aos poucos conseguiu montar uma oficina e foi o primeiro fabricante de charretes e carrocerias de caminhão na cidade. Meu avô era um artesão que conseguia transformar ferro e madeira em diferentes peças para uso doméstico e comercial. Quando seus filhos foram constituir suas próprias famílias, ele fechou a oficina e passou a transportar, com a charrete puxada pelo Baio, os passageiros que embarcavam e desembarcavam na estação de trem que hoje é só ruína de um tempo.


Márcio Mariguela é psicanalista e professor de história da filosofia contemporânea na Unimep.

Um comentário:

  1. Olá querida amiga,

    vejo que vc incluiu minha história em seu blog.
    gostei do adjetivo "intrigante": que desperta a curiosidade, que surpreende, que faz querer entender.
    Lacan disse que a verdade tem a estutura da ficção: inventar-se numa narrativa, fazer da vida uma obra de arte.

    um abraço,

    Márcio

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