quarta-feira, 19 de maio de 2010

DOS DENTES QUE CAEM E DOS QUE NÃO DEVERIAM CAIR.

Olá queridos e queridas
Albor Vives Reñones, do grupo Violar, nos brinda com um artigo sobre o filme Dente Canino. Numa época em que se fala tanto em "desestruturação familiar", Albor nos apresenta algumas percepções sobre a família e as violências que atravessam a vida de todos nós.
Comentem.

Dos dentes que caem e dos que não deveriam cair
Em meados da década de oitenta os cineclubes (sim, houve um tempo no que as pessoas se reuniam para ver filmes decentes coletivamente, em pequenos cinemas, meio improvisados e mambembes) apresentaram um filme japonês que causou certa comoção e debate na época. A balada de Narayama (Narayama Bushi-Ko, Dir.: Shohei Imamura) ganhara a Palma em Cannes em 83, e fizera já uma carreira premiada. A história da anciã de 69 anos, que ao aproximar-se de seu 70º aniversário prepara sua ida ao monte Narayama para lá, como rezava a tradição, ser deixada pelo filho mais velho para morrer, trazia temas delicados e intensos à tona. A situação de fim de século XIX japonês não diferia muito de algumas regiões miseráveis atuais e, talvez por isso mesmo a disponibilidade de velhinha em seguir a tradição, tenazmente, indicava um valor maior, de sacrifício pela coletividade familiar, que sofreria privações com uma boca a mais.
No ano passado Cannes premiou (em outra categoria, a Um certo olhar) um outro filme que traz à tona uma questão similar: como proteger a família?
Kynodontas (foi apresentado na 33ª mostra internacional de cinema em SP com o título de Dente Canino) do grego Yorgos Lanthimos traz a família recluída em uma casa, cujos únicos contatos com o mundo exterior são as idas do pai ao trabalho, da prostituta que vem vendada para satisfazer as necessidades sexuais do filho, e dos aviões que cruzam o céu e são tratados como aviões de brinquedo, prestes a cair a qualquer instante.

A situação é tão absurdamente impossível que rapidamente entramos no universo alegórico. Tudo ali indica várias possibilidades de entendimento. A mãe define os sentidos das palavras a seu bel prazer, zumbis são flores amarelas e xoxota uma lâmpada grande (e teclado por sua vez xoxota...), assim como os sentidos relacionais são definidos pelos pais conforme acreditam que aquilo protegerá “as crianças” do mundo exterior.

As atividades familiares são todas estruturadas visando alcançar mais pontos, que definem privilégios. Os exercícios, as tarefas, os conhecimentos, os prazeres, são totalmente definidos, limitados e autorizados pelo casal. A família acima de tudo. Filmes são parte da educação indireta (e cenas hilárias da filha mais velha “lutando” e repetindo os diálogos de Rocky – o lutador, e as dancinhas de Flashdance quebram o ritmo claustrofóbico), mas não aqueles que possam atentar contra os valores da família.
Que diferença de famílias! E de estratégias! Poderíamos pensar.
Mas não tão diferentes assim. O canino nunca cai, sabemos todos, inclusive nós que não somos dentistas. Para ter seu pedido aceito de ir a Narayama a velhinha bate com os dentes numa pedra (reza a lenda que a atriz fez concretamente a batida, perdendo os dentes frontais). Para poder sair da casa-refúgio a filha mais velha teria de esperar que seu canino caísse, outra das regras impostas no funcionamento da casa. Cansada de esperar resolve “acelerar” o processo, como a velhinha, abrindo a via de escape na porrada. Mesmo que contra si.
Nem tão diferentes tampouco no indicar as dinâmicas macro sociais em pequenos exemplos holográficos dos microcosmos. Ali, na microfísica se mostram os mesmo poderes, dinâmicas e relações. E as intenções de proteção, nossas e dos outros, com a inevitável tinta de dominação que essa proteção pede, se explicitam com a clareza dolorida de um dente que não cai, para proteger-nos do passo inseguro no “fora”.
E como sempre é mais fácil olhar os dentes do outro que os próprios, aproveitamos este espelho, que reflete nossas bocas, sorrindo, alegres, fechadas, bravas, indignadas, surpresas, ao ver uma situação aberrante sinalizar nosso cotidiano canino, que também não cai...
Os que desejarem ver o filme, que não sei se terá lançamento no Brasil, podem usar da generosidade da rede torrent pelo link (com legenda):

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