sábado, 3 de janeiro de 2009

UM OLHAR A RESPEITO DA INDISCIPLINA NA ESCOLA ANTE A COMPLEXIDADE DA SOCIEDADE ATUAL


Certa vez, lendo um artigo sobre cultura e cotidiano escolar, deparei-me com a imagem de um pintor anônimo que destacava em seu quadro as figuras da Sagrada Família. O menino Jesus, acompanhado por José e Maria, carregava uma pequena lousa em sua mão esquerda, e o seu braço direito era puxado pelas mãos de sua mãe. O que me chamou a atenção foi o fato da imagem ter sido produzida em meados do séc. XVI e poder ser lida como um sentimento de resistência à escola que, em geral, acreditamos existir somente nos dias de hoje.
Os historiadores da educação referem-se ao séc. XVI como sendo o momento em que emergem, no mundo ocidental, programas educativos que privam a criança do contato com os adultos em seu processo de aprendizagem. A partir do séc. XVII, a escola transforma-se num espaço de disciplinarização. Rompem-se os laços de solidariedade não somente entre os alunos, mas, também, entre eles e os professores. Desse momento em diante, passa-se a incentivar a delação, a competitividade, as comparações, a separação entre os bons e os maus alunos. Essas técnicas de disciplinarização vão se modificando até se transformarem em uma ampla rede de poder na sociedade contemporânea.
A escola se reorganiza, implantando novos tipos de educação: formação permanente, educação à distância, educação midiática, treinamentos empresariais, avaliação contínua. Ao invés de mais liberdade, ganhamos controles ilimitados, contínuos, operados por um sofisticado esquema empresarial em que o “marketing” aparece como o mais importante instrumento de controle, modificando a nossa maneira de viver, as nossas relações com as pessoas.
Os efeitos de poder se fazem sentir pelo desejo de uma motivação externa à vontade individual. Perdemos a motivação interna. Seguimos uma verdade que está fora de nós e pensamos agir com autonomia, quando é um olhar externo ao nosso, espalhado difusamente na “sociedade de controle”, que regula o "nosso" olhar. Dinheiro, sucesso, prestígio passam a constituir a imagem que cada um de nós deseja alcançar. É humilhante não se impor ao olhar do outro como um “vencedor” e, sendo assim, não importa se os meios usados para ser admirado sejam lícitos ou ilícitos.
Se, no poder disciplinar, a lógica era marginalizar os alunos, distinguindo os infratores, os rebeldes, agora, trata-se de incluí-los, de aceitá-los em suas diferenças. Todos são chamados a participar: os jovens e os adultos que abandonaram a escola; a família, a juventude, os policiais engajados em projetos educativos. Nunca se falou tanto em cidadania, ou em programas educativos nos quais cada cidadão é chamado a participar para zelar pela igualdade entre os homens. Igualdade entendida aqui como direito a consumir, portanto como uma nova forma de uniformidade. Somos convidados a participar da cidadania democraticamente instalada, desde que paguemos para obter a realização dos nossos sonhos. Sonhos esses programados pela sociedade informatizada na qual vivemos: ser belo, saudável, jovem, viril, forte, bem sucedido, "zelador da minha comunidade".
A escola se tornou um “sistema aberto”, atingida por inúmeros projetos que oferecem produtos aos seus usuários. Mas, nem todos podem ter acesso às “maravilhas” oferecidas pelo “mercado universal”, que, além de riqueza, fabrica miséria. Não atingir a expectativa de ser o “melhor”, cria em muitos alunos um sentimento de impotência. Diante daquele “olhar externo”, que diz o que devemos fazer para “subir na vida”, o aluno sabe que é um perdedor. Uma vez perdida a sua dignidade, por que ele deverá respeitar a dignidade do seu professor, do seu pai, das autoridades? É significativa a frase de um garoto de 12 anos numa entrevista ao pesquisador Yves de la Taille: “(...) estou danado mesmo, posso fazer o que eu quero”.
Qual a possibilidade de nós recusarmos à regulação a que estamos submetidos, opondo-nos, ainda que provisoriamente, aos modos dominantes de existência? Essa não é uma tarefa fácil. Os meios de comunicação, a família, o marketing são fornecedores de modelos influentes nas nossas vidas e nas dos nossos alunos, porém, é possível desmontar essa “mecânica infernal” preservando algo da expressão própria da criança, do adolescente. Para isso, precisamos encontrar terrenos nos quais seja possível o “exercício da função de autonomia”.
Segundo o filósofo Michel Foucault, constituir-se a si mesmo, enquanto sujeito de suas próprias ações, significa vincular o que eu sou, ao que se pode fazer e ao que se é obrigado a realizar. Este “cuidado de si” não implica em “auto-ajuda”, nem em exercícios solitários de introspecção, produzindo o isolamento em relação ao mundo. Egoísmo e cuidado de si são antagônicos, pois é o completo domínio de si mesmo que desenvolve o distanciamento entre si mesmo e o outro, de modo que se possa examinar se os princípios das ações que estabeleço para mim correspondem às minhas ações junto aos outros. Essa experiência de si é dominar-se, não com uma força que reprime o que está prestes a explodir, mas que provoca um prazer que se tem consigo mesmo.
Esse trabalho sobre si mesmo é uma prática social, é um trabalho que implica num sistema de obrigações recíprocas. Exige tempo!
Estamos todos em busca de novas formas de luta. Muitos dos “acontecimentos” que atingem as nossas vidas nos lançam em ações nas quais pensar é enfrentar-se a si mesmo num perpétuo combate entre o que somos e o que desejam que nós sejamos, entre o trabalho de si para consigo e a comunicação com os outros. Nessa perspectiva, o trabalho do educador não é controlar, conformar, nem reformar, mas espalhar os germes de um novo modo de existência que se aventura a inventar novas possibilidades de vida. Esse novo aponta para o surgimento de um ética que nasce do encontro com outros e de regras que diante do normativo refletem sobre a historicidade dos sujeitos. Os sujeitos existem sim, mas não se constituem “naturalmente”, logo, é imperativo estudarmos, enquanto pesquisadores, educadores que somos, quais as “verdades” que se impõem aos sujeitos, constituindo subjetividades narcísicas, incapazes de ouvir, compreender e conviver com as diferenças, com as tensões e conflitos sociais, como também subjetividades obedientes às tecnologias que se apropriam do “eu” e aniquilam sua capacidade de reflexão, esta sim “imprescindível às ações humanas em geral e à ação educativa em especial”. Em “A Vida do Espírito”, a filósofa Hannah Arendt comenta o julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém. Quando ele era inquerido sobre as atrocidades cometidas, sempre alegava ter sido um excelente funcionário. Era simplesmente incapaz de pensar sobre decisões éticas. Sempre que era confrontado com situações para as quais não havia procedimentos de rotina parecia indefeso. Diz Arendt que não se trata de estupidez, mas de irreflexão, ou seja, “é mais provável que a perversidade seja provocada pela ausência de pensamento”. Essa ausência pode ser comum em pessoas inteligentes, o que não significa que tenham “um coração perverso”. Essa conquista do ato de pensar pode se dar através da educação. Se a escola puder ser o lugar da produção coletiva de conhecimento e de saberes, ela será capaz de (re) criar o sentido da autoridade dos mestres e da autonomia para o pensar. Investir nesse tipo de escola não é trabalho para burocratas nem para políticos preocupados com o melhor “ranking” das instituições educacionais a serviço da lógica de mercado. Ou se investe e se acredita nos sonhos, ou se paga com o preço da “irreflexão”. Os mais velhos já viveram essa história e os mais jovens já ouviram falar das “páginas infelizes” do nosso passado tão presente.




2 comentários:

  1. Esse texto dá muito o que pensar. Praticamente cada parágrafo é um desafio à reflexão.
    Minha sugestão é que a autora o desdobre em vários textos, cada um com seu foco. Fica mais fácil ler na tela do que um texto longo. E para a gente pensar, também.

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  2. Sugiro o filme "A Voz do Coração", um exemplo que vale a pena refletir com educadores(as). A arte como saída e o processo educativo como guia. Vale super a pena ...

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